Black Mirror: “White Bear” (S02 E02), crime e castigo

Opinião 18.12.2017 por Thiago Oliva

Justiça com as próprias mãos: solução ou novo problema?

Captura de tela do episódio “White Bear

Por Eric Torres Ferreira e Juliana Maria de Medeiros

Vivemos em um contexto em que qualquer acontecimento tem o potencial de se tornar viral e a partir do momento que algo é de conhecimento de todos, inevitavelmente, as pessoas realizarão julgamentos baseados em sua percepção pessoal, valores e moral. Estes julgamentos são levados ao extremo no episódio White Bear, da série de televisão britânica Black Mirror.

O episódio se inicia com a personagem principal, Victoria, acordando em um lugar desconhecido e sem memória de acontecimentos passados ou de sua própria identidade. Ao buscar ajuda de vizinhos, se depara com eles em um estado de “hipnose”, parecendo não se importar com sua situação e completamente focados em seus aparelhos celulares. Ela é, então, atacada por pessoas mascaradas, encontrando em meio de sua fuga a ajuda de uma mulher, que a explica o que está acontecendo. Ao ser exposta a um certo sinal transmitido por meios de comunicação, a grande maioria da população entrou neste estado de hipnose, enquanto que alguns indivíduos, não acometidos por este estado, decidiram perseguir outras pessoas também não afetadas por ele, tal como Victoria, por mera diversão, para que as pessoas filmassem. No final do episódio, ao chegarem a uma estação de TV denominada White Bear para poderem desligar o sinal, Victoria percebe que tudo aquilo não passava de uma encenação para lhe induzir o medo e o sofrimento como formas de punição por sua participação em um crime cujo seu papel foi o de espectadora – ela filmou seu noivo torturando e assassinando uma criança. Esta encenação é perpetuada inúmeras vezes, já que a personagem, diariamente, recebe choques que fazem com que ela perca a memória e a noção de que tudo o que está acontecendo é um espetáculo criado para entreter os visitantes do “parque de diversões” cuja atração principal é o sofrimento da personagem. Esse ritual é reproduzido infinitamente, criando nela continuamente a sensação de medo e desespero.

Neste episódio, diferentemente do que ocorre nos demais, a relação entre seres humanos e tecnologia fica menos clara, uma vez que o falso estado de hipnose dos personagens não é nada mais que um artifício usado para manter Victoria dentro de uma rotina que diariamente a castiga por um crime pelo qual já foi julgada e condenada criminalmente. A sociedade, não satisfeita com a punição legal, encontra uma forma desproporcional para punir a personagem.

A “punição” se transforma em uma vingança. A sociedade, horrorizada e revoltada, parece ignorar o direito, a punição já atribuída pelo Estado à personagem, ensejando a necessidade de que ela, a criminosa, tenha uma punição mais severa por seus crimes, tornando toda a situação absurda e desumana para o espectador, porém mostrando a naturalidade com que este tipo de punição é internalizada por todos dentro do episódio.

Até os minutos finais do episódio, não é possível saber com clareza a razão pela qual Victoria está passando por toda aquela situação degradante. Com a revelação final do “espetáculo” tudo fica claro, e a empatia que muitos sentiam por ela é abandonada, nascendo, momentaneamente para uns e perpetuamente para outros, um sentimento de merecimento, ou até mesmo de justiça. Este sentimento de “justiça” é construído com a criação do imaginário de um “monstro” para que as pessoas se distanciem do cometimento de atrocidades, como se esse tipo de ação somente pudesse ser praticada por pessoas “anormais”, não por um cidadão qualquer. Afastar a humanidade destas pessoas é uma forma de proteção da consciência de cada um, e uma vez que a humanidade é afastada, a criação de punições mais cruéis é facilitada, pois não se trata mais de um ser humano, mas sim de um “monstro” que deve ser parado a qualquer custo.

Nesse aspecto, mídias como a televisão e, mais recentemente a internet, contribuem para a espetacularização da aplicação do direito penal e penas “paralelas”, como as sofridas por Victoria, para a difusão desse imaginário de “monstros” que acabam se tornando indivíduos a serem temidos e vistos como inimigos da sociedade. Essa veiculação midiática, portanto, aumenta a expectativa de vingança atrelada ao cometimento de crimes, de modo que a população, ao identificar-se com a vítima, entende ser razoável sanar o mal cometido por meio de “resposta à altura” daquele que cometeu o crime.

No Brasil, programas sensacionalistas como o popular “Cidade Alerta” ou o antigo “Linha Direta” ilustram os mecanismos por meio dos quais a mídia influencia o imaginário social, pautando a busca por “justiça” como aumento do rigor punitivo e uma espécie de “vingança social”. O uso de imagens apelativas de violência, aliadas com um discurso punitivista de perseguição aos monstros (que são muito diferentes dos “cidadãos de bem” que assistem ao programa), além de demonstrar encenações que podem distorcer a realidade, a critério daquilo que o cinegrafista achar mais interessante em termos de audiência, constrói o imaginário do público de forma que este associa a violência a estes “monstros” e procuram formas simplistas de garantir que estes parem de assolar a vida em sociedade. Neste sentido, a pauta da redução da maioridade penal, vista como a “solução” para a alta criminalidade pela direita brasileira, foi fortalecida por estes programas e pela mídia.

No episódio White Bear, a exploração da imagem da personagem Victoria pela mídia alimenta o desejo de vingança da própria sociedade, representada pela platéia, e demonstra como essa forma de punição extrapola o direito. A comunicação incessante sobre o crime e o “monstro” passa, dessa forma, a integrar a pena à qual a personagem foi condenada. Apesar de, no episódio, isto ter sido levado às conseqüências máximas, é possível observar em casos atuais uma situação semelhante em que a pessoa, após o cumprimento de sua pena, não tem seu direito ao esquecimento garantido e é obrigada a reviver a situação diariamente, muitas vezes não conseguindo sua reinserção na sociedade.

Esse episódio, assim como muitos da série Black Mirror, representa distopicamente certos comportamentos sociais. Cabe, portanto, a reflexão sobre o punitivismo na sociedade, em que a busca de vingança é confundida com a busca pela justiça, e acaba sendo suscetível à influência da mídia sobre as formas de garantir maior segurança. A mídia, ao exaltar a punição de criminosos, acaba fazendo um desserviço a um direito penal que tenta se prestar à ressocialização do criminoso, uma vez que, se este encontrar em si o estigma de “monstro”, e se a sociedade procurar meios de vingança ao invés de reinserção social, a sua recuperação será dificultada ou até mesmo impossibilitada, criando um novo problema, e não uma solução para a suposta insuficiência das penas aplicadas pelo Estado.

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