Black Mirror: “The National Anthem” (S01 E01), opinião pública e internet

Opinião 17.11.2017 por Thiago Oliva

Opinião pública e internet: um espaço para novas armadilhas?

Captura de tela do episódio “The National Anthem

Por Ana Paula Varize Silveira e Sofia Saad Gonçalves

A liberdade de expressão e de participação política constituem, sem dúvida, conquistas democráticas que merecem ser protegidas e encorajadas. E com o desenvolvimento das novas tecnologias e da internet e o seu crescente acesso e uso pela população, a opinião pública encontra cada vez mais espaço para manifestação. Mais do que isso, assume proporções de tamanho alcance que se torna impossível de ignorar pelos próprios atores principais do sistema político – governantes, juízes e legisladores – que são constantemente por ela influenciados e, eventualmente, até mesmo coagidos.

Foi o que ocorreu na popular série distópica Black Mirror, atualmente produzida e transmitida pela Netflix, com o polêmico episódio de estreia “The National Anthem”. Ambientado numa Londres paralela, o drama se inicia com a divulgação de um vídeo no YouTube, o qual anuncia que acaba de ser sequestrada a princesa Susannah, membro da família real querida pelo público. Todo o drama se passa num espaço extremamente reduzido de tempo. Nas primeiras horas da manhã, é postado o vídeo anunciando o sequestro da princesa, e, em troca de sua liberdade, é exigido o cumprimento de uma única condição, demandada para, impreterivelmente, às 16h da tarde daquele mesmo dia: a transmissão ao vivo e em rede nacional do primeiro-ministro Michael Callow mantendo relações sexuais com um porco.

A opinião pública assume papel de liderança neste episódio. Ao longo do dia todo, as emissoras de TV – para as quais se torna insustentável deixar de transmitir o desenvolvimento do caso, como inicialmente havia sido exigido pelo governo – fazem a cobertura do que se torna um evento nacional. São realizadas então pesquisas com o público a respeito de qual seria a atitude esperada do primeiro-ministro, promovidos debates com especialistas, retransmitidas as manifestações feitas nas redes sociais, e assim por diante. Tudo numa multilateralidade comunicacional característica dos dias de hoje, observada graças à estrutura horizontal das redes de comunicação da internet.

Por meio dela, o público em geral, tradicionalmente mero receptor das informações veiculadas pela mídia tradicional, torna-se simultaneamente receptor e emissor de fluxos multidirecionais de mensagens, interagindo com o conteúdo no mesmo momento em que ele está sendo produzido, e, desse modo, exercendo uma influência sobre a informação transmitida em proporções jamais vistas.

Para o primeiro-ministro Michael Callow, a consequência desse fenômeno foi ter uma escolha extremamente grave a respeito de sua própria vida privada tirada de suas mãos. É importante destacar que esse cenário não está tão distante de nossa realidade quanto possa inicialmente parecer.

No Brasil, temos vivenciado nos últimos meses um cenário político movimentado, cuja tensão se concentra especialmente no caso da Lava Jato. O acompanhamento dos andamentos se dá praticamente em tempo real, através das redes sociais e com grande envolvimento da opinião popular, viabilizada pelos mesmos canais. Não é difícil nos depararmos em qualquer espaço da internet com um sentimento comum de insatisfação com a política brasileira, bastante genérico e abstrato. Sites de notícias, postagens em redes sociais, colunas críticas, e os mais diversos canais de comunicação online a todo momento servem como plataforma para o debate e a interação multilateral dos internautas.

Para exemplificar como as consequências desse fenômeno podem se dar na prática, podemos observar a atuação do juiz de primeira instância da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, Sérgio Moro.

Enquanto juiz, esperava-se de Moro a devida imparcialidade e respeito pelas garantias processuais de defesa. No processo em que julgou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porém, não foi isso que se pode observar. O que ocorreu, na realidade, foi um julgamento em que diversas ilegalidades foram cometidas. Para mencionar algumas: a condução coercitiva de Lula, a autorização de grampos de conversas entre Lula e Dilma Rousseff e divulgação do conteúdo, a recusa dos pedidos de provas técnicas requeridas pela defesa, entre outras.

É como se aquele “clamor público” por justiça – se é que podemos, de fato, entender isso como justiça – tivesse de ser atendido a qualquer custo. Nesse caso, não pretendemos extrapolar para o entendimento de que Moro foi coagido a tomar todas essas decisões, mas é possível atribuir ao menos parte da responsabilidade à forma como a opinião pública tem se colocado nesses espaços virtuais em relação às manifestações em prol da punição.

Não é difícil encontrar outros exemplos de casos em que a força da opinião pública, disseminada por meio das tecnologias de comunicação, gerou impactos problemáticos – para dizer o mínimo. A transmissão ao vivo das sessões de julgamento do STF e STJ é um exemplo clássico do poder coator da opinião pública, sendo altamente questionável a postura mais política e menos neutra adotada pelos ministros, que sabem estar sendo observados atentamente.

Veja bem que não se critica aqui a transparência que deve conduzir os atos públicos, mas sim a prática de, literalmente, se colocar uma câmera na frente dos juízes, que terão cada frase, cada voto, friamente analisados e duramente criticados, para posterior transmissão e difusão em proporções nacionais – de forma assustadoramente semelhante a um reality show. Seria um exagero dizer que tamanha exposição compromete a necessária neutralidade, imparcialidade e isenção com as quais os juízes devem contar?

De todo modo, fica claro o poder da mobilização popular. No episódio “The National Anthem”, o primeiro-ministro descobre que o poder de decisão não está mais em suas mãos quando recebe a notícia de que a opinião popular está massivamente a favor da proposta feita pelo sequestrador. No mundo real, mesmo que o poder decisório de juízes ainda permaneça em sua órbita de controle, cabe nos questionarmos: em que medida? Estariam suas decisões sendo realmente neutras, objetivas e analíticas, como é exigido dos membros do Poder Judiciário?

Pretende-se com a presente resenha propor uma reflexão sobre até que ponto o direito de se fazer ouvir e de influenciar a formação de decisões judiciais, da forma como tem se dado atualmente, é necessariamente benéfica à democracia. Os casos mencionados, assim como diversos outros, demonstram a fragilidade de nossas instituições diante dessa nova interface cada vez mais presente em nossas vidas. Não há que se discutir que a opinião popular no processo de construção democrática é essencial e a participação deve ser estimulada. Mas as nossas instituições políticas estão preparadas para essa nova forma de interação com a população?

A estrutura tradicional dos três poderes vem demonstrando fraquezas e a parcialidade ou influenciabilidade do Judiciário é apenas uma delas. Nesse sentido, como encaramos a ampliação do acesso a esses canais que nos permitem exercer uma influência tão direta e intensa sobre o poder de decisão de nossas autoridades dentro do processo democrático? Vivemos um momento delicado, em que devemos buscar formas de fomentar o desenvolvimento da nossa ainda imatura democracia, ao invés de permitir que ela venha a se desgastar. O que menos se quer é que ela encontre sua ruína em seus próprios fundamentos.

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