Por que faremos uma maratona de edição sobre artistas mulheres brasileiras na Wikipédia?

Notícias Desigualdades e Identidades 08.03.2018 por Mariana Valente e Juliana Monteiro (Wiki Educação Brasil)

No dia 10 de março de 2018, o Wiki Educação Brasil e o InternetLab vão promover o edit-a-thon Arte+Feminismo, uma maratona de edição de verbetes na Wikipédia sobre artistas brasileiras mulheres. A atividade faz parte de outras, que vão ocorrer pelo Brasil na semana que marca o Dia Internacional da Mulher: no mesmo dia, vai acontecer o edit-a-thon no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, a editatona no Espaço Harckerspace Matehackers, em Porto Alegre, e o edit-a-thon no CRIE – Centro de Referência e Inovações para Educação, em Rio Branco; no dia anterior, no Centro de Treinamento da ANAC, em Brasília. A cidade de São Paulo terá ainda um segundo evento dedicado ao Arte+Feminismo: o edit-a-thon Arte+Feminismo: Mulheres na Wikipédia, nos dias 10 e 17 de março, no Centro Cultural Artemis.

Há boas razões para que algumas dezenas de pessoas se juntem para criar novos verbetes, ou melhorar verbetes existentes sobre mulheres – e em particular, as artistas, foco do Arte+Feminismo. A Wikipédia é uma enciclopédia livre, online, criada em 2001, e escrita colaborativamente por milhares de pessoas, espalhadas pelo mundo. Os verbetes são escritos em centenas de línguas, mas a Wikipédia de língua inglesa supera as demais de longe: são mais de 5 milhões de verbetes. Em português, é quase 1 milhão. A Wikipédia tornou-se uma fonte extremamente relevante de informação e conhecimento, e é muito frequentemente um primeiro contato das pessoas com um determinado tema, permitindo aprofundamentos a partir das referências apontadas.

Existe uma comunidade ativa de editores de verbetes, organizada em uma estrutura interna de acordo com a qual pessoas mais experientes ganham mais funções e poderes. É a forma encontrada para buscar manter padrões de veracidade e imparcialidade na Wikipédia. Mas qualquer pessoa pode começar um novo verbete, ou editar um verbete já existente. Ainda que não haja barreiras estruturais à entrada de novas pessoas, e que qualquer tema ou personagem possa ganhar um verbete, desde que respeitadas regras, como a de notoriedade, ou seja, que haja fontes atestando a importância daquele tema ou pessoa, a desigualdade de gênero na Wikipédia é gritante. A primeira face dessa desigualdade está no gênero das pessoas que figuram nas biografias.

Um levantamento de 20 de fevereiro de 2018 identificou um total de 992.413 artigos na Wikipédia em Português, dos quais 207.551 são biografias. Dessas biografias, apenas 36.167 são biografias de mulheres, o que corresponde a apenas 17,43% do total. Não é diferente na Wikipédia em inglês, em que são 17,49% as biografias de mulheres, em relação ao total de biografias. Essa proporção, aliás, já foi resultado de um esforço consciente: o projeto Women in Red, criado pela comunidade de editores da Wikipédia em inglês em julho de 2015, foi responsável pela criação de milhares de biografias de mulheres – antes disso, eram 15% as biografias de mulheres.

Não é só de menos verbetes biográficos que as mulheres sofrem, mas também de menos dedicação e qualidade, nos verbetes já existentes. A comunidade lusófona da Wikipédia avalia os verbetes, elegendo alguns como “artigos bons” (AB) e “artigos destacados” (AD). Dos 33 artigos de políticos considerados como artigos bons, 26 são de homens e 7 de mulheres. Entre os artigos destacados, 22 são biografias de artistas, e, nesse caso, todos são homens. É claro que a própria classificação de artigos pode também estar relacionada ao preconceito de gênero – ou seja, a uma tendência que faz parte da nossa estrutura social e que, de partida e às vezes de forma absolutamente naturalizada e quase inconsciente, leva pessoas a desvalorizar temas ou conteúdos relacionados às mulheres ou ao que é associado ao feminino.

De toda forma, a baixa representatividade feminina perpassa todas as áreas do conhecimento, e está ligada a muitos fatores. Um deles é justamente decorrente da menor participação histórica feminina em algumas áreas, que acabam sendo entendidas como prioritariamente masculinas. O apagamento de mulheres que foram centrais na ciência, na computação, na política, nos movimentos sociais e na arte vem sendo progressivamente denunciado por pesquisas históricas de perspectiva feminista. Esse apagamento se opera de forma ainda mais intensa se se tratam de mulheres negras ou indígenas, por exemplo. A ausência de registros (em lugares como a própria Wikipédia!), por sua vez, contribui para estereótipos de gênero, que associam, por exemplo, política, intelectualidade ou tecnologia a homens brancos.

Por outro lado, é possível pensar que, na Wikipédia, a disparidade de gênero no conteúdo esteja ligada à radical desigualdade de gênero entre os editores. Os números indicados nas duas seções iniciais são uma consequência da falta de mulheres editoras. Um estudo de 2011 da Fundação Wikimedia revelou que 8,5% do total de editores, em todas as línguas, eram mulheres.

Não foram levantadas informações específicas sobre o conjunto de editores da Wikipédia em português; outras informações expressam a imensa disparidade de gênero. Mas, alguns números sobre o projeto em português são reveladores.

Por exemplo, as Wikipédias nas diversas línguas contam com administradores uma minoria de editores, mas os mais dedicados, experientes e assíduos, e que reúnem alguns poderes específicos. Na Wikipédia lusófona, são 76 administradores, mas apenas uma identifica-se como mulher – e ela é portuguesa. Nenhuma das mais de 100 milhões de brasileiras é administradora da Wikipédia. Desde que a Wikipédia em português foi criada, houve um total de cerca de 215 administradores: 208 homens e 7 mulheres (3,25%). Dentre os demais cargos relevantes na comunidade – burocratas (10), verificadores de contas (3), supressores (2) e eliminadores (15), há zero mulheres. (Vale apontar que esses dados foram inferidos a partir dos nomes e perfis dos editores, o que pode levar a erros, já que o ideal seria a identificação de gênero por autodeclaração. Tampouco estão disponíveis dados sobre raça ou orientação sexual; se houvesse, certamente outras imensas desigualdades seriam também apontáveis).

É extremamente complexo destrinchar os motivos pelos quais as mulheres não se fazem presentes na comunidade. A Wikipédia em Inglês tem um artigo sobre o assunto, Gender bias on Wikipedia, que menciona diferentes estudos, que apontam para razões que vão desde desconfortos das mulheres com características do ambiente dos editores, até menos disponibilidade de tempo livre – o que está ligado ao fato de que, em muitos lugares do mundo, mulheres que têm trabalhos remunerados acumulam muito mais comumente trabalhos domésticos que homens na mesma posição. Um estudo do Ipea de 2017 mostrou que, no Brasil, mulheres trabalham 7,5 horas semanais a mais que homens, precisamente por causa dessa diferença.

A menor presença de conteúdos relativos a mulheres e de mulheres editoras na Wikipédia está ligada a questões muito maiores a serem superadas. Aumentar e melhorar os conteúdos sobre artistas mulheres, com especial atenção para mulheres negras e indígenas, é uma intervenção modesta, porém objetiva e significativa. O convite desse texto é à participação, no próximo sábado, mas também e principalmente à reflexão sobre o tema e a ações permanentes para sua superação.

Colaboraram: Érico Wouters, com levantamento de dados, Pedro Lima, com elaboração dos gráficos, e Natália Neris, com consultoria de conteúdo.

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