Formação de Direitos Humanos e Diversidades: Discriminação na Internet

Notícias Desigualdades e Identidades 17.06.2016 por Juliana Ruiz

Anteontem (15/06), a diretora Mariana Valente e a pesquisadora Natália Neris participaram do evento da Escola da Defensoria Pública de São Paulo “Formação de Direitos Humanos e Diversidades: Discriminação na Internet”. Fez também parte da mesa Gisele Truzzi, advogada, especialista em direito digital.

Gisele, Mariana e Natália: pesquisadoras durante evento da defensoria
Gisele, Mariana e Natália, em evento da Defensoria Pública (Foto: Beatriz Accioly)

A advogada apresentou os principais instrumentos legais disponíveis para o enfrentamento da discriminação na Internet, bem como ofereceu orientações jurídicas gerais a serem tomadas quando da ocorrência de casos.

As pesquisadoras, por sua vez, inicialmente abordaram algumas questões gerais sobre a relação entre discriminação e tecnologia. Diante do grande número de denúncias de homofobia, racismo e casos de discriminação e violência de gênero, são comuns os diagnósticos que identificam a Internet como “uma terra sem lei” ou um “terreno fértil para atos criminosos”. No entanto, Natalia e Mariana relativizam tais afirmações, que consideram tecnocentradas: a recém-concluída pesquisa sobre como o direito lida com casos de disseminação de conteúdo íntimo nas redes e impressões iniciais sobre a dinâmica da aplicação da legislação antirracista sugerem que é preciso pensar os problemas de forma mais multifacetada, para interpretá-los e sugerir saídas para sua superação ou minimização de seus efeitos.

Em primeiro lugar, porque não há uma limitação clara entre o que ocorre dentro e fora da Internet. Claro que a Internet muda a dimensão de alguns dos problemas, mas há evidências de que tais questões estão relacionadas aos problemas existentes no “mundo real”. As pesquisadoras citaram o caso de Latanya Sweeney, professora de Harvard que, ao fazer uma busca de seu nome no Google, viu a propaganda de um site para pesquisa de antecedentes criminais das pessoas. Ocorre que “Latanya” seria um nome “negro” e, quando a professora fez testes com nomes mais comuns entre brancos norte-americanos,  ela constatou que a propaganda aparecia menos frequentemente. Relatos de usuários também dão conta de que negros teriam menos chances de serem hospedados por anfitriões na plafatorma AirBnb. Ou seja, tanto em casos envolvendo Big Data, nos quais são identificadas tendências no uso de dados (se mais pessoas costumam procurar nomes de pessoas negras e histórico criminal, isso tem mais chances de aparecer em propagandas direcionadas) ou em plataformas de economia compartilhada, problemas que existem no “mundo offline”, como o racismo, vão continuar a aparecer. Não seria “da natureza” da Internet ser um terreno fértil para o ódio – isso também estaria ligado a uma série de questões e conflitos sociais, e, de acordo com as pesquisadoras, a Internet teria trazido um mecanismo de retroalimentação. Além disso, a mesma Internet onde ocorrem atos de discriminação, afirmaram, é lugar de novas mobilizações de movimentos sociais e processos de conscientização muito importantes.

Em segundo lugar, há algumas nuances na forma com que o direito lida com problemas de violência e discriminação que podem facilitar ou dificultar a resolução dessas questões.  As pesquisadoras compreendem que o problema não é simplesmente falta de lei. Fato é que existem leis aplicáveis, mas elas nem sempre conseguem dar respostas desejadas, por uma série de motivos, ligados ora à própria lei, ora ao funcionamento das instituições, indicam as pesquisas mencionadas por Mariana e Natália. Um exemplo do primeiro caso é a aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): ele não é tão protetivo quando há disseminação de conteúdo íntimo de adolescentes, pois foi pensado para a punição de casos de pedofilia; o fato de a adolescente ter consentido ou não em disseminar as imagens não importa – o que vai fazer os juízes declararem o autor culpado é se i) houve exposição de genitália ou cenas de sexo explícito; ou ii) se o autor sabia que a vítima era menor de idade.

Ainda sobre problemas relacionados à lei, identificados na aplicação, os casos envolvendo crimes contra a honra (que são invocados tanto em alguns casos de violência de gênero na rede quanto nos casos de racismo) são emblemáticos: temos questões processuais relevantes a influenciar o fluxo dos casos no sistema de Justiça, tais como o prazo para queixa-crime (seis meses) e o fato de ação penal relacionada ser privada (a vítima precisa de um/a advogado/a e nem sempre consegue recorrer à advocacia gratuita).

Como problemas relacionados ao modo de funcionamento das instituições, pode-se observar que, em certas ações envolvendo condutas racistas, apesar do emprego de expressões como “macaca” ou “negra fedorenta”, alguns desembargadores não vêm classificando esse tipo de insulto como injúria racial porque, alegam, estaria comprovada somente uma ofensa contra o indivíduo, mas não o dolo ou “intenção preconceituosa” contra toda uma raça (TJSP, AC 990.08.092769-8). Aqui, parece existir uma dificuldade dos magistrados em enxergar o racismo como um problema estrutural e não apenas como um caso isolado de ofensa. Problema similar aparece nas decisões relativas a violência de gênero: não há reconhecimento de que, nas violências em questão, o problema é de gênero e não apenas uma agressão individual, um reconhecimento que poderia alterar o sentido de algumas decisões.

Um exemplo de estrutura legal que tem sido aparentemente eficiente para resolver casos de “revenge porn” trazido pelas pesquisadoras é previsão do Marco Civil da Internet (MCI) para responsabilização dos provedores em casos de retirada de conteúdo íntimo. A regra geral do MCI é a exigência de ordem judicial de remoção para que um provedor seja responsabilizado por conteúdo ilícito, mas, em casos de revenge porn, a lei estabeleceu uma exceção: os provedores são notificados sobre a existência de conteúdo íntimo e, se não o removerem a partir da notificação, podem ser responsabilizados judicialmente.

Pela apresentação desses resultados, as pesquisadoras sugerem que o estudo das dinâmicas sociais (com atenção aos efeitos de marcadores como raça, classe, gênero, orientação sexual e idade, e suas inter-relações) e a análise do momento da aplicação das leis são essenciais para o processo de formulação de propostas de enfrentamento do problema da discriminação na Internet.

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